sexta-feira, 8 de abril de 2016

Patti Smith - Horses


Ano de lançamento: 1975


Felipe:
Este texto poderia começar da mesma forma que outros mil textos produzidos sobre Horses desde 1975: “Jesus died for somebody sins, but not mine”. A frase que abre o primeiro álbum de Patti Smith é o início de Gloria, cover que acabou se tornando a versão definitiva da canção de Van Morrison. Mas este texto vai começar explicando o porquê de Horses ser de alguma forma responsável por pessoas como Zak de la Rocha (e eu) preferirem “Patti Smith a Van Morrison; Bad Brains a Eagles ou The Clash a Ronald Reagan”.

Horses foi um dos primeiros registros da criação da cena punk - que ainda não era um movimento propriamente dito - lançado meses antes do primeiro álbum dos Ramones, companheiros de palco no CBGB. Mesmo consolidado historicamente como um documento fundamental da música americana do século XX, é um pouco complicado falar para um fã de Dead Kennedys que Patti Smith é a matriarca do punk baseado “apenas” no que ouvimos no álbum de estreia.

Diferente do minimalismo lírico dos Ramones, dos textos do Clash incitando a luta contra os opressores ou dos versos niilistas dos Pistols, Horses é um punk que traz poesia embalada não só nos rocks rudimentares do The Patti Smith Group e nos vocais anárquicos da cantora como também em elementos de reggae e jazz. Trata-se de um híbrido estranho de poesia beat com o rock n’ roll cru do CBGB.

É mais fácil todos concordarem que Patti Smith é uma das figuras mais cool do rock n’ roll. A própria capa de Horses define isso, na imagem de Robert Mapplethorpe - fotógrafo da cena sadomasoquista gay de Nova York que, apesar de homossexual, teve um relacionamento com a cantora. A androginia, o corte de cabelo desleixado, a camisa branca surrada que ela conseguiu no Exército da Salvação, uma mistura unissex e feminista de Baudelaire com Sinatra que destoava da imagem promocional das ‘girl singers’ da época, como a contemporânea e colega de CBGB Debbie Harry.

Fã doentia de Rimbaud e dos poetas beats Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, Patti ainda tinha uma idolatria tão grande por Keith Richards que a fazia acreditar, ainda adulta, que o guitarrista era seu amigo imaginário. Morava no Hotel Chelsea e ganhava a vida como redatora freelancer para revistas de rock. Definitivamente, uma pessoa legal para se ter como amiga nos bares copo sujo e quebradas fodidas de Nova York nos anos 70.

Mas, antes de mais nada, Patti é considerada uma poetisa (ouça Horses numa oportunidade em que tiver acesso às letras), o que a coloca na lista de escritores do rock, junto de nomes como Bob Dylan e Jim Morrison. Refletindo a bagagem cultural de Smith como poetisa, Horses traz letras inspiradas no Simbolismo francês, em gravações que contam com participação de nomes de peso da cena local como o Television Tom Verlaine – com quem Patti também teve um caso - e produção do Velvet Underground John Cale. 

Mesmo sem mirar no mundo inteiro, o coice de Horses atingiu ouvidos do outro lado do Atlântico, ajudando a fomentar a revolução do punk inglês de 1977, bem mais furioso e rígido. 

A cantora conta que, ao tocar na Inglaterra pela primeira vez, aproveitou para assistir uma apresentação dos novatos Sex Pistols. Na ocasião, assustada com a proporção que o punk rock tomou no país, viu Johnny Rotten dizer ao público: “alguém aqui foi no show da hippie com o pandeiro ontem? Horses, horses, horses... HORSHIT!”. De repente, para a geração de garotos sem futuro e semianalfabetos que o Partido Trabalhista abandonara no Reino Unido, as referências intelectuais da cantora faziam dela uma inimiga.

Mas não interessa. Como ela diz, aos berros, na versão matadora de My Generation, do The Who, que algumas versões de Horses trazem: “I don’t need that fucking shit!”. Durante as oito canções do álbum, Patti Smith canta, grita, uiva ferozmente, sussurra docemente e planta as sementes malditas do punk no solo regado a mijo de cerveja barata.

Desde então, muita gente não ouviu Van Morrison outra vez.

Nota: 10/10



Rafael:
Entram em volume quase inaudíveis o baixo e o piano, numa cadência lenta e repetitiva. Em poucos compassos intercalados surge uma voz anasalada, severa, anunciando: “Jesus morreu pelos pecados de outros, não os meus.” Aos poucos entram linhas tímidas de guitarra e a instrumentação e o vocal vão ganhando força e velocidade, como um velho trem pegando embalo. “Os pecados são meus, pertecem só a mim, a mim.”, afirma a mulher. No meio da canção percebemos versos que remetem à Glória da primeira banda de Van Morrison, o Them. É e não é a mesma canção, é e não é um manifesto beatnik, é e não é rock puro e simples. É agora uma locomotiva embalada descarrilando na sua cara quando do verso de conquista à mulher, o cheiro de cortiço exalando pelos sulcos do vinil, Patti Smith soletra e berra as iniciais da música no refrão: G - L - O - R AIAIAIAIAI, G L O R I A! G L O R I A!

O êxtase libertador desse refrão não diz respeito apenas à um flerte na rua, mas como toda boa poesia há várias camadas de significado e interpretação. É a libertação do rock para voltar ao básico, a libertação da mulher num meio misógino, a libertação da poesia num gênero considerado “burro” e “sem significado”, principalmente o nascente punk rock.

Conscientemente ou não, tudo em Horses é e não é punk ao mesmo tempo. Há o despojamento completo da capa, de uma simplicidade espartana, mas que só acrescenta um ar “cool” e estiloso das ruas de Nova Iorque. Há a produção simples, direta e crua de um dos pais do punk, o escocês John Cale, mas há também elegância e elaboração que contrastam com seus pares punk da mesma época (há que se ressaltar também que nenhuma banda punk da cena do CBGB se parecia uma com a outra, mas isto é para outro momento). Não se pode descartar, também, a estrutura livre e a longa duração das canções, que as aproximaria perigosamente dos excessos do rock progressivo. No entanto, não há gorduras em Horses, mesmo em músicas que ultrapassam facilmente os quatro minutos de duração.

Apesar de ser um disco de estreia, Patti Smith não era uma novata do meio artístico. Além de ter se relacionado com o fotógrafo Robert Mattlehorpe (responsável pela foto da capa de Horses), já havia escrito artigos nas revistas Creem e Rolling Stone e era figura conhecida no circuito alternativo, onde declamava suas poesias em forma livre com o acompanhamento do guitarrista Lenny Kaye (que figura em Horses, balançando entre a crueza do rock de garagem e os drones hipnóticos e fantasmagóricos extraídos de sua guitarra). Lou Reed, impressionado com o que ouvira em Piss Factory, compacto lançado de forma independente em 1974, é quem faz a ponte para que a Arista Records aceitasse gravar o disco da Patti Smith Band.

A semente de Piss Factory se prolifera como erva daninha em Horses, aliando fúria, lirismo, uma verve poética que se balança entre o terno, o surrealismo e a resposta direta das ruas. Além da carta de intenções da primeira faixa, ouve-se ainda o reggae que sonoramente parece despojado mas contém uma história trágica de separação à força por um suicídio em Redondo Beach; a história de delírio de um filho que perde o pai em Birdland que alterna rimas secas e um refrão bombástico; presencia-se à homenagem deliberada a Sister Ray dos Velvets na grande suíte de degradação de Land: Horses/Land of a Thousand Dances/La Mer (De), culminando numa despedida fantasmagórica e sentida dos amigos que se foram, oferecendo a eles o último trago.

Horses imediatamente foi aclamado pela crítica e, embora tenha vendido modestamente, foi abraçado pelos seus pares de cena e é uma obra que expandiu os limites e as possibilidade do gênero punk, assim como Dylan havia feito anos antes com o rock e o folk. E sendo punk ou não, poético ou não, o que fica em primeiro lugar é o poder da integridade e sinceridade do que sai das caixas de som. Não importa a música e as letras sem a verdade do artista se descortinando à sua frente. Em Horses e em Patti o espírito é livre e aberto e como ela menciona em Gloria: “Palavras são apenas regras e normas para mim, para mim.”

Nota: 10/10






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