sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Marvin Gaye - Here, My Dear


Ano de lançamento: 1978


Rafael:
Em nossos relacionamentos todos passamos por momentos bons, paixão, romantismo, amor e por momentos ruins, conflitos, brigas e separação. No universo da música pop são temas que foram eternizados em grandes clássicos e hits, nada fora do normal quanto a isto. Mas o que dizer de um disco (duplo) inteiro dedicado ao fim de uma relação?

Na década de 70, Marvin Gaye viu o céu e o inferno: ao passo que era exaltado como o gênio e a força criativa que conseguiu mudar o modus operandi da “máquina de hits” da Motown com seu libelo anti-guerra “What´s Going On?” e sua ode ao amor e à liberdade sexual em “Let´s Get it On”, se via cada vez mais afundado em drogas, dívidas (seu contador chegou a relatar que gastava 500 dólares por dia em cocaína) e na promiscuidade de relações extraconjugais. O desgaste de seu casamento com Anna Gordy, irmã do presidente da Motown Berry Gordy, era inevitável. Marvin ainda seria procurado pela justiça por não pagar pensão para seu filho. Sem escapatória, aceitou a proposta de seu advogado para resolver a questão: para pagar o que devia no divórcio, metade dos royalties do seu próximo disco deveria ser repassado à Anna e seu filho.

O impulso inicial era a auto-sabotagem. Desmotivado, ressentido e furioso, não via sentido em se dedicar. No entanto, sentia que devia aos fãs algo de qualidade. E da amargura e ressentimento veio o impulso para ter sua vingança em forma de música: “Here, My Dear”, o álbum que seria sua escapatória da cadeia, sua salvação para as dívidas, é o relato amargo, direto e de peito aberto da deterioração da relação de Gaye e Anna até culminar no divórcio. As pessoas se fascinam hoje em dia com reality shows? A exploração voyeurística sádica de uma relação foi antecipada em décadas nos sulcos desse álbum, sem censura nem pudor.

A mensagem não é sutil: logo na capa vemos a fachada do que seria um tribunal e estátuas no estilo romano; no verso, um tabuleiro com um jogo chamado “Julgamento” e diversos itens “partilhados” na separação. Os nomes das músicas são praticamente um recado direto à Anna, como “I met a little girl”, uma lembrança agridoce de quando se conheceram em 1964 e a análise sádica desse mundo ruindo em 1976; ou “When you did stop loving me, when I did stop loving you?”, um lamento sentido sobre a frustração de não ter dado certo no final; ou ainda, pura e simplesmente “Anger”, uma reflexão sobre os sentimentos ruins que surgem nesse momento e como isto pode fazer mal para ambos. Por outro lado, o instrumental segue o estilo funky, sinuoso e suave, sua marca registrada desde “Let´s Get it On” e o alto padrão de qualidade exibido na década se mantém aqui e serve como um verniz para tentar amenizar as diversas farpas encontradas no meio do caminho.

De fato, não se deixe enganar pelas melodias assobiáveis e o suíngue insinuante, pois as letras cortam como navalha e não há papas na língua. Pela primeira vez Marvin Gaye era responsável por todas as letras, não apenas se expondo, mas fazendo uma análise distanciada e minuciosa do que fez ruir sua relação com Anna. Ele também expõe seus sentimentos de forma sincera, exibindo o remorso das coisas terem ido por esse caminho destrutivo.

“Here, My Dear” não foi bem recebido pelo público e críticos à época do lançamento. Muitos consideraram bizarra essa exposição tão sincera e direta e a rejeição pelo álbum fez com que Marvin Gaye e a Motown não se dedicassem na promoção do disco, encerrando a divulgação em pouco tempo. Os problemas de Marvin apenas agravaram, culminando no seu assassinato, cometido pelo próprio pai.

Recentemente “Here, my dear” é considerado o grande clássico subestimado de Marvin Gaye e um dos grandes álbuns confessionais já feitos, estando lado a lado com obras como “Plastic Ono Band”, de John Lennon, “Blue” de Johnny Mitchell ou “If I Could Only Remember My Name” de David Crosby dentre outros que conseguiram extrair da dor, da perda e do sofrimento verdadeira arte.

Nota: 9/10



Felipe:
Marvin Gaye sempre gravou discos como se quisesse comer o ouvinte. E geralmente ele comia mesmo. Porém, mais do que comer, em Here, My Dear Gaye parece querer fazer amor com o ouvinte, sob a iluminação difusa de velas aromáticas, o perfume de pétalas de rosas espalhadas sobre a espuma de uma banheira com sais efervescentes e o sabor de um bom Cabernet Shiraz envelhecido em barris de carvalho.

Apesar do clima, o álbum lançado em 1978 foi produzido em meio a uma fase de caos na vida pessoal do cantor. Gaye se separava de sua primeira esposa, que ficou com os royalties do disco pelo acordo do divórcio. Por isso, este documento de definição da fuck music e coletânea de orgasmos múltiplos em forma de soul, funk e jazz traz, paradoxalmente, letras que falam de separação e rompimento. Não é atoa que Here, My Dear foi considerado pela Rolling Stone o “álbum mais estranho da Motown”. 

Sabendo que a ex-dona patroa ficaria com a grana anyway, Gaye começou cantando sem paixão na produção. No entanto, ao longo do processo de gravação das faixas, o artista foi se envolvendo de tal forma com as canções que, segundo ele mesmo, cantou até drenar tudo o que tinha passado. As faixas botam pra fora toda a dor e raiva do divórcio, falando de medo, raiva, carinho e arrependimento: “Anger”, “When Did You Stop Loving Me, When Did I Stop Loving You", “You Can Leave, but It Going to Cost You”. 

A melhor faixa, "Is That Enough?", é a prova de que um artista precisa de conflitos para criar: um soul irresistivelmente funkeado, composto após Gaye retornar do tribunal cantarolando a melodia e improvisando parte da letra. Dá pra sentir a agonia dos eventos recentes na voz do cantor, enquanto ele reclama de ciúmes e de ter de pagar advogados; se considera um tolo ingênuo; pede um cigarro e pergunta ironicamente se ficar com ela a vida inteira e fazê-la feliz não seria suficiente. 

E, como na época as capas, contracapas e encartes dos álbuns eram tão importantes quanto a música (se hoje nem a música importa mais, imagine capas e encartes. Contracapa então deve ser uma palavra que a geração atual sequer conhece), Gaye encomendou uma arte grandiosa em que aparece pintado usando uma toga romana, na frente de um templo com palavras como “matrimônio”, “dor”, “divórcio” e “julgamento”.

O álbum não foi bem recebido nos anos 70, considerado bizarro e anticomercial. Com a recusa de Gaye em divulgar o disco, a Motown parou de investir em promoção cerca de um ano após o lançamento, quando o artista pirou e entrou num autoexílio que culminou na separação de sua segunda esposa. É isso mesmo, separação da segunda esposa. Vivendo e não aprendendo. 

Marvin Gaye sempre vai ser lembrado por clássicos como Let’s Get it On e Sexual Healing – bem como por sua morte trágica. Mas Here, My Dear é a soul music em seu momento mais sombrio, profundo e pessoal, a ponto de a ex-esposa processar Gaye por invasão de privacidade ao expor sua intimidade para o mundo nas canções. Mas não era o dinheiro do disco que ela queria? Here, my dear, here it is.

Nota: 9/10


OBS.: infelizmente não há vídeo disponível no Youtube. As malditas gravadoras, em pleno 2016, acreditam que esta é a melhor forma de fazer com que as pessoas sejam forçadas a comprar um disco e ouví-lo.

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